14 março 2010

Perdida

Hoje acordei e ao olhar-me ao espelho vi nada. Um grande Nada espalhado pelo meu bonito espelho quadrangular.
Tentei encontrar-me e não consegui. Acordei com uma enorme sensação de perda e a meu lado a cama permanecia perfeitamente intocável, demasiado perfeita.
Tentei chorar mas não consegui.
Eu sou o teu reflexo. Ensinaste-me tudo o que sou hoje, mas esqueceste-te de me ensinar a chorar, a sofrer e a amar.
Agora sinto-me vazia, sinto-me Nada. Não sei porque me sinto assim, uma vez que mal me lembro dos contornos da tua cara e do teu corpo. Só sei que me sinto mal, só sei que me sinto perdida, só sei que a cama continua perfeitamente feita, só sei que não sei nada.
Sinto os olhos húmidos. Mas não sei chorar.
Sento-me num canto do meu quarto e vejo o que deixaste para trás.
Nada.
Se calhar foi pelo melhor, mas devias ter-me dito como chorar. Devias.
Percorro a sombria casa onde habitam demasiados quartos e apenas uma pessoa. Toda ela se encontra escura, toda ela se encontra de luto.
Já deprimida percorro com a mão as linhas das paredes para ver se ainda resta algum vestígio teu. Mais uma vez, Nada.
Chegada a cozinha pergunto-me se deveria comer o bolo de chocolate, não tenho fome.
Olho para o café acabado de fazer, mas não tenho sede. Olho para uma tablete de chocolate e penso que hoje não gosto de chocolate.
Restos do jantar de ontem permanecem na grande banca de mármore. A única coisa que resta de ontem.
Avisto uma baguete de pão à minha esquerda, mas não tenho fome. Penso em tomar uma grande dose de comprimidos e voltar para a cama, mas tenho medo de a desmanchar.
Cansada e ainda com os olhos húmidos, caminho em direcção à sala onde um gato perdido no escuro me comprimenta.
Não me lembro de ter um gato.
A sala está fria apesar de uma lareira ainda crepitar a um canto da sala.
Volto para o quarto e aí desmancho a cama e abro a janela por onde a luminosidade do dia resolve entrar e fazer uma festa. Não sei o que é uma festa. Simplesmente não sei.
Encontro um espelho com rodas no canto abandonado num dos sombrios quartos. Trago-o para o meu e coloco-o a um canto de modo a poder ver o reflexo de todo o quarto.
Sento-me no canto oposto e observo o que se passa a meu redor.
A cama jaz desfeita agora, pela janela a luminosidade brinca. Percorro o olhar e nada me chama a atenção, o quarto é apenas constituído por uma cama, uma secretária, uma cómoda, um armário, uma cadeira... e então os meus olhos param. Algo me chama a atenção. Olho nessa direcção e então encontro-me sentada numa posição fetal a um canto de um quarto que apesar de iluminado permanece sombrio e escuro.
Um líquido escorre pela minha cara. Perscruto o meu reflexo para que ele me dê alguma resposta.
Sem controlar levanto-me e corro descompassadamente para o espelho e parto-o em mil bocados.
De volta ao meu canto reparo que me perdi outra vez. O meu reflexo, sim esse perdi há muito. Não é isso. Agora perdi outra coisa. Algo que não consigo descrever e que me faz falta, algo profundo, algo que já não está mais preso à minha essência.
E então como uma explosão, eu percebo tudo.
Foste embora porque eu era Quase Nada, levando o que me fazia um Tudo, a minha alma. E deixando-me assim, a um canto de um quarto, despida de Alma e vestida de Lágrimas, chamando-me a mim própria de Nada.
Texto para a Fábrica de Letras
Tema de Junho: Estava vazio...

8 comentários:

  1. Tu não és um nada! Tu és tudo muito mais do que isso. Só precisa deixar que o sol reflita sobre ti, e, deixe também se "contaminar" pela luz intensa que existe dentro de ti. Somos nós que apagamos as chamas da vela. E somos nós que as acendemos também. Mais ninguém.

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  2. Maria,
    Impressionada, inquieta e, triste com suas palavras. As palavras Maria reflectem na tela, no papel, no “moleskin” , escritas e, o ou faladas estados intrínsecos em nós. E, de facto, na nossa vida existem momentos, instantes que, lamentavelmente, nos sentimos errantes Maria. No entanto, esses momentos são efémeros. Sabe, porque?! Porque com a mesma simplicidade, tenacidade que nos apercebemos semelhantemente o entendemos e, forçosamente os deliberamos.

    No entretanto, e, lembrando um pensamento inesquecível do filme “E tudo o Vendo Levou” em que Scarlet O’Hara nos brinda com “Tomorrow is another day" o meu anterior desassossego se sossega e, a minha tristeza se dilui na convicção que esse “Perdida” seja um sentimento passageiro …

    Um abraço em formato de laço de cetim de mim para si Maria.

    Ana

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  3. Ana,
    agradeço as palavras bonitas que semeou no meu coração e peço-lhe que esteja descansada, pois de facto hoje foi um dia diferente, foi um dia melhor.

    Um abraço quente como um raio de sol

    Maria

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  4. Que lindo Maria, tantas vezes que nos sentimos assim um nada, quando na realidade somos tudo! bjs

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  5. Maria,
    não imagino nossa 'protagonista' sem alma, vejo-a ferida em sua identidade; levada certamente ao extremo de um sentimento mal administrado; que corroeu as bases de sua autoestima.

    Com uma boa dosagem de amigos, sol e lazer isso se refaz.

    Coisa diferente veremos, e não demora.

    Beijos.
    Ricardo.

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  6. Somos TUDO! Carne, sangue, cérebro, artérias, músculos e... mais que isso, somos razão e sentimento.
    Num texto dramático de Almeida Garrett, uma das personagens diz que só sabe o que está em seu redor.
    É urgente sabermos mais e sermos mais... sobretudo nesses momentos de vazio e escuridão.

    Um abraço solar!

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  7. Profunda e melancolicamente lindo!Bela participação!beijos,chica

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  8. Obrigada a todos os que comentaram e obrigada por terem passado pelo meu canto de sonhos. Demorei um pouco a responder e a visitar os vossos cantos mas mais vale tarde que nunca.
    Um beijo, Maria

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